“Educadores são amadores no duplo sentido da palavra, porque amam o que fazem e porque nunca estão prontos”, declarou o filósofo e professor Mario Sergio Cortella. O filósofo defende que é essencial a humildade pedagógica na prática docente, sobretudo no século 21 – quando a velocidade das mudanças faz com que os alunos sejam diferentes a cada ano, exigindo uma formação contínua e permanente.
Mario Sergio Cortella é doutor em Educação pela PUC-SP e teve como orientador de sua tese Paulo Freire, com quem também trabalhou na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e a quem veio a substituir na função de secretário em 1991 e 1992. Na entrevista a seguir, o filósofo expõe de maneira bastante clara e articulada, como em suas palestras que costumam ser muito apreciadas pelos educadores, suas ideias sobre temas que vão da sala de aula e políticas públicas à maior lição que aprendeu com Paulo Freire.
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DH: O que é humildade pedagógica?
Mario Sergio Cortella: É uma virtude necessária ao exercício da prática docente. Humildade não é subserviência, não é simplesmente abrir mão daquilo que se pensa, se deseja, que se tem como valor. Mas é não ter uma postura que seja sectária, divididora e ao mesmo tempo fragmentada dos vários modos das coisas acontecerem no nosso cotidiano. Portanto, a humildade é a capacidade de percepção de que nós estamos em formação contínua e permanente dentro da atividade do magistério. Diriam que isso sempre aconteceu, o que é verdade. O que mudou hoje é que houve um incremento da velocidade das alterações, o que exige de nós, cada um e cada uma, na área de educação escolar, uma atenção maior à nossa formação continuada. E só se forma aquele que sabe que ainda não está pronto. Isto é, o que é humildade? É saber que você não é perfeita ou perfeito. Eu gosto dessa palavra porque perfeito em latim significa “feito por completo”, “feito por inteiro”, isto é, “concluído”. E um educador sabe que não está perfeito, não está concluído, não está terminado. Esse é um sinal de humildade que ajuda a crescer.
DH: Dentro desse contexto, para o professor se atualizar é fundamental a tecnologia ou existem coisas mais importantes?
Cortella: As plataformas digitais não são inimigas nem adversárias das plataformas existentes anteriormente. O ensino a distância, que tanto se fala hoje; a primeira forma de fazê-lo foi por meio do livro. O livro é um objeto, é uma plataforma de ensino a distância. Afinal, é com ele que se levava a lição para casa. O caderno também era. Você estudava em casa, levava para outros lugares, ia à biblioteca. O que se precisa entender é que é necessário de um lado afastar a informatofobia, que é esse pânico em relação ao uso do mundo digital dentro da educação escolar e, por outro lado, afastar a informatolatria, que é a adoração de tudo que é digital, supondo que isso resolve as questões em educação. É necessário, antes de tudo, que eu seja capaz de levar em conta esse mundo digital para usá-lo naquilo que é a intenção do que se deseja fazer. Muitas vezes se fará usando a plataforma, outras sem ela. Por exemplo: um jovem, uma criança, brinca de pique, de correr, de bola e de esconde-esconde, em que não há nenhuma digitalização, assim como vai até um game, até um Wii [console de videogame] e à internet, ou seja, se pluga e despluga a partir da intenção e da necessidade. E o trabalho pedagógico também é isso. Agora, um professor ou professora não pode, de maneira alguma, afastar o mundo digital do seu cotidiano, porque o mundo hoje tem isso. Nós transformamos átomos em bits e fizemos com que houvesse uma alteração do nosso modo de convivência. Desconsiderar isso é sinal de tolice. Também cair de braços sem reflexão é outro sinal de tolice. Nem informatofobia nem informatolatria.
DH: Com a facilidade de acesso aos conteúdos, cogita-se que o professor possa vir a se tornar um mediador do conhecimento. Como o senhor enxerga a sala de aula do futuro? O professor será apenas um mediador?
Cortella: Eu sempre tenho uma reflexão em relação a essa questão: e quando não o fomos? Quando que nós não fomos mediadores? Para se supor que nós passaremos a sê-lo, quando nós deixamos de sê-lo? Supor que um aluno já chegue formado não é algo que faz sentido. Supor que o professor faça a ponte entre aquilo que ele [o estudante] não sabe e o que saberá é o que sempre existiu em educação. A grande diferença hoje é que um professor mais inteligente leva em conta aquilo que o aluno já sabe para que ele comece a saber aquilo que precisa saber. Aquilo que Paulo Freire chamava de universo vivencial do aluno, a leitura do mundo. Não supor que o aluno é apenas um vaso absolutamente vazio em que se vai colocando coisas dentro. Mas em que momento da nossa trajetória nós não fizemos a mediação? Sempre, em todos os tempos. Agora se tem isso com uma atenção maior, porque se valoriza a capacidade que o aluno carrega. Agora, que nós sempre o fomos [mediadores], não tenho a menor dúvida.
DH: Falando sobre desempenho escolar, existem estudos que mostram que o aspecto socioeconômico e a escolaridade dos pais são mais impactantes do que qualquer outro fator. Levando isso em consideração, o que sobra para a escola fazer para melhorar o desempenho do aluno?
Cortella: É preciso oferecer políticas compensatórias que façam com que a equidade venha à tona. É absolutamente injusto tratar desiguais de forma igual. Se você tem uma desigualdade que precisa ser suprimida, é preciso dar um tratamento em que ele tenha um atendimento especial. E esse especial não significa exclusivo, não significa privilégio, significa apenas uma atenção maior. Ninguém em sã consciência proporia, em nome da igualdade, a extinção das UTIs nos hospitais. Existem algumas situações que são de UTI. Se a gente se refere na educação ao desempenho escolar, há de fato o impacto forte do contexto familiar no desempenho dos alunos. Para isso, a escola pública, que é majoritária em nosso país – representa 87% das vagas que nós temos na educação básica –, necessita que os governos, nas suas redes, estruturem projetos pedagógicos que envolvam a comunidade. Ou seja, que faça com que a comunidade de pais, alunos, professores e funcionários participe mais ativamente para elevar a condição da própria comunidade. De nada adianta supor que o aluno isoladamente possa ser avaliado por algo que não domina se ele não tem uma fonte, uma base anterior. Embora “a piscina seja a mesma”, na hora de mergulhar e nadar, o modo como cada um chega até a piscina, mais formado, mais alimentado, mais treinado, vai fazer com que haja de fato diferença. Por isso, as redes públicas necessitam criar políticas específicas para que haja a equidade, isto é, a garantia dos direitos dentro de uma sociedade em que se quer democracia.
DH: Falando sobre equidade, qual é a sua opinião sobre políticas de meritocracia, como bonificação de professores, em um contexto desigual de desempenho escolar?
Cortella: Políticas de meritocracia dessa natureza, implantadas quando não envolvem uma rede pública, o conjunto dos docentes, são extremamente perversas, porque criam uma disputa interna e podem criar a simulação de algumas situações. Um governo que deseje, de fato, alterar a qualidade da educação que oferece dentro da estrutura pública precisa ter políticas que não trabalhem apenas com estímulo monetário exclusivo para um grupo. Avaliação não é auditoria, é reorientação de processos. Avaliação não é disputa ou concurso. Acho muito bom, quando se tem um estímulo, fazer com que em uma determinada escola haja a possibilidade de elevar a condição daquela comunidade pelo desempenho. Mas, quando isso é feito sem que se ofereça a quem lá trabalha as condições de formação, isso produz um agravamento da injustiça. Porque você pode ter, por exemplo, uma escola na área central de Curitiba ou de São Paulo ou do Rio de Janeiro que tem professores que são mais formados, já estão na área há mais tempo. Quem não é da área de educação talvez não saiba uma coisa, mas nas redes públicas um professor vai escolhendo dar aula nas áreas centrais de acordo com os títulos e pontos que já tem. Os ingressantes, com menor tempo, com menor formação, costumam ir para as áreas periféricas. Ora, se você fizer um sistema no qual haja avaliação nessa sistemática é óbvio que para aquele que já entrou prejudicado, se não teve condição de ser colocado em um ponto de equidade, será falho. Por isso acho muito parcial esse tipo de processo. Avaliação é necessária, mas utilizar avaliação como mecanismo de remuneração é muito estranho quando você trabalha com rede.
DH: Qual seria então o caminho para a valorização do professor, esse problema que se arrasta há anos no Brasil?
Cortella: A valorização não passa só por governo, passa pela sociedade geral. A gente tem uma sociedade em que a atividade da prática docente passou a ser considerada uma atividade secundária, pouco valorizada. A valorização docente vem, especialmente, por melhores condições de trabalho, formação permanente e democratização da gestão. Nesses três polos – democratização de gestão, formação continuada e ao mesmo tempo melhoria das condições de trabalho – haverá valorização. Uma valorização que é feita apenas no abstrato, apenas com um discurso que aparece em períodos de eleição, é uma armadilha tola, na qual quase ninguém mais tem algum tipo de crença.
DH: Muitos professores e nossos leitores admiram Paulo Freire. Qual foi uma das lições que o senhor aprendeu com ele no contato próximo que tiveram?
Cortella: A maior lição que aprendi com Paulo Freire foi o uso do verbo esperançar. Paulo Freire dizia que é preciso ter esperança, mas do verbo esperançar. Porque tem gente que tem esperança do verbo esperar, e esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Alguns dizem “espero que dê certo”, “espero que funcione”, “espero que resolva”, isso não é esperança, é espera. Esperançar é ir atrás, se juntar, não desistir. O que mais aprendi com Paulo Freire foi a ideia de esperança ativa, que não é da pura espera, mas é a esperança que procura, constrói, busca e sabe que a atividade docente, acima de tudo, não é um emprego, é fonte de vida. A gente também tem isso como um emprego, mas ela é, acima de tudo, uma fonte de vida em que a esperança é a nossa recusa ao biocídio, a nossa recusa à falência da vida e, portanto, o nosso modo de existir e esperançar.
Entrevista publicada há cinco anos na revista Profissão Mestre.
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