sábado, 29 de janeiro de 2011

TEMPO LOUCO: Inundações na Austrália: por que estamos surpresos?

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Inundações na Austrália: por que estamos surpresos?
Por Germaine Greer 
Capital do estado de Queensland, Brisbane sofreu mais uma inundação
O que está acontecendo na Austrália é chuva pra valer. Os britânicos podem pensar que são especialistas nesse assunto, mas a verdade é que eles mal sabem do que se trata. Aquela garoa fria, um suor dos anjos que molha os para-brisas britânicos, não é chuva de verdade. Já faz semanas que a chuva tem batucado nos meus ouvidos, saltado do meu telhado de aço corrugado, borbulhado entre as rochas, jorrado das árvores; e correndo, veloz, passado por minha casa, para a ravina, em direção a um pequeno riacho, depois a outro maior, ao Rio Nerang e, então, desembocado no mar, em Southport. A precipitação passou de 350 mm nos últimos quatro dias. O riacho do lado está tão alto e rápido que não posso sair nem meus funcionários chegar até aqui. Não dá nem para deixar a casa e caminhar debaixo das árvores molhadas, porque corro o risco de voltar infestada de sanguessugas. Posso acabar com um no olho, sem alguém para me acudir.

A chuva cai em pancadas regulares. Quando o seu barulho diminui, momentaneamente, posso ver o Monte Hobwee através de véus de névoa úmida. Mas logo ouço o rugido de um novo ciclo que se aproxima, e o tempo fecha novamente. Atrás da minha casa, uma catarata branca invade a ravina através das pedras. Deitada na cama, sinto até os ossos sua força e seu impacto surdo.

“Yeah”, como dizem os australianos, o problema é a chuva. Meses de temporais encharcaram o solo. As enxurradas já não têm para onde ir, a não ser para os lados, através das vastas planícies deste velho continente. Todos nós aprendemos na escola o poema que diz o nosso é “um país castigado pelo sol… de secas e chuvas violentas”. Os apresentadores da Groggy TV que, em longos turnos, falam sobre as enchentes por horas a fio, repetirão essemantra, tantas vezes, que ficará gravado na cabeça das crianças. E mesmo assim, não caiu a ficha. O padrão se repete e, no entanto, os australianos ainda são pegos de surpresa.

Os meteorologistas sabem que esse dilúvio é consequência do fenômeno La Niña. Em intervalos bastante regulares, a pressão atmosférica no lado oeste do Pacífico cai; os ventos alísios sopram do leste – lado mais frio – para as áeas de baixa pressão, empurrando a água morna da superfície ao oeste, em direção ao continente. À medida que o ar saturado de humidade chega à terra firme, resfria-se e libera sua carga. Em junho do ano passado, o Departamento de Meteorologia avisou que o La Niña estava prestes a “despejar baldes” na Austrália. Em 1989 e 90, o La Niña foi responsável por enchentes nos estados de New South Wales e Victoria; em 1998, em Queensland e New South Wales. O Dr. Andrews Watkins, diretor do Departamento de Previsão do Clima, afirmou à mídia: “Os modelos de previsão mostram um risco considerável de um La Niña em 2010”. Na cidade de Brisbane, a referência era a enchente de 1974. Entretanto, a maioria dos habitantes do estado de Queensland desconhece que a pior inundação da história de Brisbane aconteceu em 1893. Há seis meses, os meteorologistas acharam que valia a pena alertar a população para um “inverno tardio e chuvoso, seguido de uma primavera e um verão encharcados”. E o que a pessoas fizeram? Nada. Apenas disseram, “Vai dar tudo certo, companheiro”. Mas não deu.

É preciso um La Niña para trazer chuva ao interior do continente, em quantidade tão imensa que é quase impossível administrá-la. Mesmo assim, os australianos devem tentar. A barragem de Wivenhoe, no Rio Brisbane, foi construída para proteger a cidade de outra inundação como a de 1974. Há anos ela tem funcionado a 10% de seu potencial. Então, quando se encheu neste ano, ninguém queria deixar escoar a preciosa água. Acabou-se descobrindo que a barragem havia chegado a 190% de sua capacidade de armazenamento. As autoridades pesarosamente concluíram que, não só suas comportas teriam que ser abertas, como essa medida coincidiria com uma super maré alta na baía de Moreton. Ninguém se perguntou se, semanas antes, deveria ter se começado a reduzir gradualmente o nível da barragem. O prefeito de Brisbane, ciente de que uma catástrofe estava prestes a ocorrer debaixo do seu nariz, fez um ataque histérico aos que se colocaram contra a construção da barragem. Porém, os acontecimentos subsequentes mostraram que barragem não substitui uma estratégia coerente para chuvas.

O fenômeno não é passageiro, a chuva mais normal continuará a cair, provavelmente, até o fim de março. O professor Neville Nicholls, presidente da Sociedade Australiana de Meteorologia e Oceanografia, acredita que “as enchentes de Queensland foram causadas por aquele que é um dos mais fortes (se não o mais intenso) episódios de La Niña desde que o fenômeno começou a ser registrado no fim do século XIX”. Perguntaram-lhe se esse recrudescimento era consequência do aquecimento global, mas ele se recusou a comentar. Outras pessoas foram rápidas em afirmar que essas condições extremas são uma consequência direta do aquecimento. (Muitos leitores do The Guardian ficarão surpresos ao saber que, na Austrália, ainda há um debate acalorado sobre a existência ou não do aquecimento global.)

Uma das desvantagens de morar na costa leste do país, caso da maioria dos australianos, é que toda a chuva que cai nas montanhas conhecidas como Dividing Range (algo como Cordilheira Divisória) vem para cá. Aqui em cima, no topo da bacia hidrográfica, o que tenho a temer são os deslizamentos, que acontecerão se as encostas encharcadas cederem. No nível do mar, cada um que adivinhe. Meteorologistas e hidrólogos tentam prever os níveis máximos e os horários de pico como ioiôs, revisando suas estimativas para cima e para baixo.
O mundo só está a par do que tem acontecido na Austrália, porque grande parte da capital de Queensland, Brisbane, “a cidade de melhor qualidade de vida da Austrália”, está agora submersa em uma água marrom e imunda. Cidades menores estão inundadas há meses; algumas já sofreram enchentes cinco vezes desde o início de dezembro. O que o resto do mundo deveria se perguntar é: por que os australianos não se prepararam para minimizar a destruição? No sul dos Estados Unidos, um morador poderia dirigir o seu Chevy até um dique; australianos raramente os constroem. Um dique de 8 metros manteve a cidade de Grafton seca, mesmo com a subida dramática do rio Clarence. Mas Yamba, que fica um pouco abaixo no curso do rio, não tem essa proteção e está debaixo d’água. Goondiwindi tem uma barragem de 11 metros para protegê-la do rio Macintyre, mas hidrólogos previram um pico de 10,85 metros. E a cidade começou a ser evacuada.

Quando dirigi para o sul, para visitar minha família no Natal, tive que contornar as inundações na área de Riverina. No caminho de volta, próximo a Kyogle, tive que evitar o rio Richmond, transbordado. As imediações de Darling Downs já tinham sido alagadas em dezembro e o foram novamente; Dalby, Chinchilla, Warwick e Condamine já tinham começado a limpeza, mas tiveram que evacuar as áreas baixas pela segunda vez. A segunda enchente em Chinchilla foi pior do que a de dezembro. Os moradores foram instruídos a ferver a água encanada porque ela parece ter sido contaminada pela bactéria E. Coli. O rio Burnett inundou Bundaberg de novo e o rio Mary alagou Maryborough. Rockhampton está submersa há um mês. Não há qualquer garantia de que o fim esteja à vista.

No caso de Toowoomba, Grantham e Murphy’s creek, não havia nada que pudesse ser feito. O Vale Lockyer sofreu uma tromba d’água. O dilúvio repentino gerou uma onda de oito metros de altura que rasgou as cidades, afogou gente dentro dos carros, arrancou casas e levou-os em turbilhão correnteza abaixo. Essas imagens, captadas pela TV, foram vistas pelos australianos centenas de vezes. São cenas de pesadelo, com carros e ônibus, uns sobre os outros, sendo carregados por ruas cheias de pessoas, agarrando-se a qualquer coisa que pudessem encontrar para não serem levadas pela enxurrada. O exército agora ajuda a buscar os corpos de 61 desaparecidos. Acabou a conversa de resgate. Até o momento, a contagem está em 26 mortos. Em Brisbane, um rapaz de 24 anos tentou ir ver como estava o pai e acabou sendo sugado por um bueiro. (a segunda parte desse artigo amanhã)

* A escritora Germaine Greer nasceu na Austrália, onde passa de 3 a 4 meses por ano administrando a iniciativa Esforço de Reabilitação da Floresta Cave Creek, em Queensland.

Esta artigo faz parte do Guardian Environment Network.

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